Mangas Undergrounds #1 – Eden: It’s an Endless World!

Bom, agora a coisa ficou séria! Depois das respostas positivas (mesmo com alguns falando que eu exagerei) ao post-convidado sobre Soul Eater, o Sr. Denys me chamou pra fazer uma coluna mensal sobre mangás undergrounds. Fiquei muito feliz, sempre guardei muito respeito pelo Gyabbo! e ser chamado pra escrever aqui… caramba! encheu o meu ego. No entanto, devo confessar que logo de começo fiquei um pouco confuso. Acontece que para esse primeiro post como coluna o Denys pediu para que eu falasse sobre o que eu considero serem mangás undergrounds. Isso pode ser um pouco estranho, mas eu nunca tinha parado pra pensar sobre como eu seleciono os mangás que eu falo, eu simplesmente falo.

Pensando um pouco, a solução veio com certa naturalidade, “mangás undergrounds” são mangás desconhecidos, no entanto, mais do que obras desconhecidas, são obras  desconhecidas e de qualidade. Nunca falei sobre um quadrinho sequer que eu considerasse ruim, se não gosto simplesmente não falo, e é isso que pretendo fazer aqui. Claro que “mangás de qualidade e desconhecidos” é um pouco amplo, não falo de qualquer mangá, eu tenho uma personalidade, um gosto próprio, então dentro desse “gênero” eu acabo falando de obras mais adultas, que contenham um maior teor psicológico, mas a premissa inicial é simples: apresentar ao público obras que ele não tenha lido, mas deveria.

E pra começar nada melhor do que esse mangá, uma ficção científica que não poderia ser mais realista: Eden, It’s an Endless World!

Eden: It’s an Endless World! é um mangá de 18 volumes, publicado em 1997 na Afternoon (casa de Vinland Saga, Historie, Mushishi) da editora Kodansha. De autoria de Hiroki Endo, a obra foi pública no Brasil pela editora Panini em meio-tanko, mas acabou cancelada após o volume #23.

Estamos em um futuro não tão distante (algo por volta do ano 2100) e a humanidade está enfrentando a sua segunda “Peste Negra”: um vírus que enrijece a pele e derrete os órgãos internos, transformando as pessoas em cascos vazios surgiu e matou 15% da população mundial.

Neste cenário, Eden começa de fato contando a vida do jovem casal Ennoia e Hanna, uns dos primeiros a serem descobertos como imunes à epidemia, como eles lidam com isso e seus conflitos internos em relação ao destino incerto da humanidade. A história, no entanto se foca na 2ª geração, onde somos apresentados ao filho dos dois e também protagonista, Elijah. Um garoto inteligente, com conhecimento sobre o mundo em que vive, mas ainda muito ingênuo, ingenuidade que não vai durar muito, visto que entre guerrilhas armadas, mercenários, prostituição, tráfico de drogas e muita morte o jovem irá descobrir (junto do leitor) que o futuro não é tão brilhante assim.

O aspecto do mangá que mais chama atenção em uma primeira vista é a maturidade do enredo, o que na verdade é um pouco inesperado, uma vez que normalmente é algum aspecto artístico que mais se destaca aos olhos do leitor no começo. Em Eden não, estamos tratando aqui de uma obra adulta que irá expor temas polêmicos e o autor não alivia pra ninguém e define isso claramente nas primeiras páginas. Em menos de dois capítulos são discutidos ou mencionados temas como religião, homossexualidade, política, biologia e existencialismo… Algo bem no estilo “é pegar ou largar”.

Mas calma, se você não é do tipo que curte uma parede de texto à la Death Note, tudo bem que o mangá pode não ser de seu melhor agrado, mas pode acabar gostando também. Acontece que o que Eden tem de narrativa densa e longos diálogos, ele compensa com muita ação. Sério, para cada capítulo de explicações científicas tem outro capítulo de carros voando, metralhadoras atirando, robôs-mutantes (chamados “Aeons”) e combates de faca muito emocionantes! Chega a ter capítulos sem dialogo algum, de forma que o mangá pode agradar aos vários públicos.

Um dos maiores pontos positivos da obra é algo que acaba complementando o enredo maduro: uma história realista. Novamente algo que foge um pouco do padrão. Estamos falando de uma obra de ficção de científica, como algo assim pode ser realista? Como é que carros voadores, inteligência artificial, membros mecânicos e robôs-mutantes podem parecer verossímeis? De duas formas:  pesquisa e personagens consistentes.

Vamos começar devagar, quando digo “pesquisa” não me refiro somente a toda base científica que é dada às muitas cenas que podem parecer “mágica” na obra, mas principalmente à pesquisa político-cultural que é aplicada no mangá. É muito claro que o autor revirou muitos livros de história antes colocar as informações na página. Hiroki Endo não queria desinformar o leitor; o mundo de Eden é um reflexo perfeito do que poderia ser o nosso futuro em termos políticos.

Logo nas primeiras páginas por exemplo, é mencionado o incidente no qual a UNPROFOR – Forças de Proteção da ONU, criada em 1992 durante a Guerra da Iuguslávia com o objetivo de realizar ações humanitárias, vigilância do cessar-fogo e proteção de civis –  invadiu a Albânia. Isso nunca aconteceu! Mas calma! Isso não é desinformação, o que aconteceu foi a invasão de outros países como Croácia e Bósnia. O que acontece no mangá é uma visão pessimista sobre os conflitos étnico-sociais na região, chegando a envolver outros países do leste europeu. Outro exemplo ainda mais interessante é a formação de grupos armados pela luta de direitos e conquista de terras do povo Uigur. Isso também nunca tinha acontecido em 1997, os Uigures nunca tinham formado grandes grupos de revolta, eram mais pequenas manifestações pela luta de direitos humanos (nunca terras). Só em 2009 (muito depois do mangá terminar) que aconteceram as primeiras grandes revoltas deste povo. Presenciamos assim, mais do que uma previsão negativa do autor, uma previsão que se tornou realidade (digo, tirando os robôs-mutantes que matam vários Uigures). Isso dá uma sensação de veracidade para a obra, faz o leitor realmente pensar: “Poxa, o nosso futuro pode ser assim”.

Pegando o ritmo, acho que deu pra perceber que Eden é um mangá que trata de muitos assuntos políticos. Mencionei o caso do leste europeu e os Uigures, mas tráfico de drogas e prostituição na América do Sul são temas recorrentes. São tratados também conflitos como os do Oriente Médio e o conflito hindu-islâmico na Índia, mas o principal embate político se passa em torno das ações da Gnostia, uma federação originaria da OTAN e da ONU, mas que logo englobou as duas e agora controla praticamente todas as Américas, Japão, Europa e algumas partes da África. Esse novo gigante império mundial, visa à adesão de todo os países do mundo dentro da corporação com o objetivo de alcançar uma paz global, no entanto, mesmo internamente ocorrem várias discriminações étnicas em relação à distribuição de recursos, formando uma espécie de ditadura disfarçada. De qualquer jeito na Agnostia (países não membros da Gnostia) as coisas também não vão bem e países como Paraguai, Peru e Índia sofrem as consequências do tráfico e conflitos de guerrilhas armadas, países inteiros chegando perto de um estado anárquico.

Calma, sei que todo esse blábláblá político pode parecer muito chato para algumas pessoas, mas como falei, pra cada página de texto Eden tem outra página de ação, mas não qualquer ação. Os conflitos políticos contribuem bastante para uma boa dinâmica: presenciamos táticas de guerra, conflitos entre supremacias étnicas, guerra de tráfico, tudo isso lembrado com vários elementos de sci-fi, então é braço mecânico voando para um lado, robôs e metralhadoras para o outro e umas das coisas mais emocionantes, vários combates entre hackers. Acredite, é mais interessante do que parece.

Mas mesmo com todo esse gigante cenário global, várias vezes vejo Eden sendo categorizado como “Drama” e é então que entram os “personagens consistentes”, mais um fator que ajuda a aumentar a credibilidade realista da obra com o leitor. Conforme mencionado anteriormente, Elijah é o protagonista da história, isso é deixado bem claro. Logo nos primeiros capítulos já vemos sua interação nesse mundo pós-apocalíptico junto com seu robô Querubim. Umas das primeiras primeiras cenas é rápida, mas muito interessante. Nela temos o conflito no qual após matar um pássaro, Elijah encontra os filhotes que obviamente morrerão sem sua mãe, neste momento o personagem se confronta com três possibilidades: Matar os filhotes livrando-os da dor, deixá-los sozinhos e fingir que esquecer o que viu, ou criar os filhotes na sua base para se livrar um pouco da sua consciência pesada. Esse tipo de situação é interessante porque além de criar um aprofundamento ao protagonista, também o faz ficar muito mais próximo ao leitor. As perguntas que o Elijah se faz são perguntas que qualquer um faria no seu lugar e mesmo que as respostas não sejam as mesmas, conseguimos entender o raciocínio e nos projetamos no personagem condutor da história logo de começo.

Mais tarde, enquanto explora as ruínas de uma grande cidade deserta, Elijah é sequestrado por um interessante grupo de mercenários. Acontece que durante a passagem de tempo de uma geração para outra o seu pai Ennoia virou a grande cabeça por trás de todo o tráfico de drogas na América do Sul e, raptando o menino, o grupo composto por personagens muito carismáticos como Sophia, uma super hacker com o corpo completamente mecânico e Kenji, um quieto e tímido soldado (que rende as melhores cenas de ação no mangá), esperam poder passar entre países membros e não-membros da Gnostia sem problema nenhum.

Durante o sequestro nem tudo funciona como o esperado, muitas mortes ocorrem e descobrimos que a mãe e a irmã do protagonista também foram sequestradas, só que pela própria Gnostia. Nesse cenário Elijah, que antes era só um garoto mimado pelo seu pai mafioso, passa a enxergar a realidade do mundo em que vive e amadurece como pessoa, mas não é só por isso que as coisas vão ser mais fáceis para ele. Mesmo quando retorna para terras um pouco mais seguras ele é mal tratado, linchado e sofre todas as consequências de ser o filho do maior homem do crime organizado. Com todo esse sofrimento, o personagem amadurecido resolve tomar rumo na vida, decidindo que vai fazer de tudo para resgatar sua família.

Falei bastante sobre o Elijah, mas ele está longe de ser o único personagem bem aprofundado no mangá. Alias, muitos dos  personagens em Eden parecem ter perfis prontos e tem um ar  um pouco clichê a uma primeira vista, mas eles são extremamente reais, cada um possui um desenvolvimento próprio durante a série. Chega uma hora que a quantidade de núcleos é tão grande, todos tão bem explorados, que fica difícil dizer qual caminho a história vai seguir, qual é o núcleo que está guiando o enredo. Cada um tem os próprios conflitos e problemas internos, de forma que fica praticamente impossível encontrar algum vilão ou antagonista, ninguém faz por fazer, tudo é explicado. Em Eden não há vilões, somente pontos de vista.

Só de Bônus, acho que talvez alguns leitores mais atentos podem ter percebido a existência de vários termos relacionados ao Gnosticismo: “Eden”, “Aenos”, “Ennoia”, “Nomad”, “Hanna”, “Querubim”. Bom, acontece que muito da história é baseada em contos Gnósticos, alguns personagens chegam a realizar papéis análogos às das histórias que serviram de inspiraçãos. Só mais um extra, algo mais para ser explorado nessa incrível obra.

Enfim, em resumo acho que Eden: It’s an Endless World! pode ser considerado como um daqueles “um mangá para todos”: tem ação, romance, aventura, trama política… Sim, é uma obra adulta, tem bastante texto, mas se você estiver com disposição de ler ou mais do que somente ler, entender o mangá e a sua mensagem, tenho certeza que irá aprender muito com ele. Então dessa forma…

Eu recomendo sem restrições, Eden: It’s an Endless World!

Bom, agora a coisa ficou séria! Depois das respostas positivas […]

12 thoughts on “Mangas Undergrounds #1 – Eden: It’s an Endless World!”

  1. Nossa, ótimo texto…..senti um amadurecimento em relação a outros que já li do Judeu Ateu em seu próprio blog.

    Ótima também foi a escolha em começar por Eden, uma mangá infelizmente incompreendido no Brasil justamente pela temática. Discordo ao que você falou de ter bastante ação, ele tem cenas de ações pontuais (e excelentes mesmo), mas é um mangá mais intrincado o que pode acabar incomodando algumas pessoas mesmo.

    Os personagens realmente são bem interessantes é um mangá onde fica muito visível a curva de crescimento dos personagens ao longo da história, tudo que acontece ao redor deles os afeta profundamente.

    Bem lembrada as referências ao gnosticismo, é um detalhe que pode acabar passando despercebidos para alguns (não que agregue algo a trama, mas é interessante saber as influências).

    Bom não vou me alongar mais,

    Parabéns!

  2. Cara, onde eu consigo esse mangá, eu quero ler xD.

    Acho interessante estas obras que fazem uma analogia/previsão de como pode ser o mundo. Vendo como as coisas estão hoje, é realmente um bom reflexo de toda esta loucura.

  3. “publicado em 1997 na Afternoon (casa de Vinland Saga, Historie, Mushishi)”
    Não citou Blade, começou mal.

    Eden é bom pela variedade.
    Você perde dois volumes e “wft”, parece que a história acabou e já é continuação. Não fica preso em uma só situação e com os mesmos personagens, e isso tem consequências caso você simpatize com algum deles se for um que vai morrer não muito depois de entrar na história. E morrer nesse mangá geralmente envolve partes do corpo explodindo e tripas.

    É mesmo um mangá muito bom sobre temas sérios sem gorfadas.
    A ação vai distrair os impaciêntes e que não querem ler sem pensar muito, mas acho que vale avisar que não é qualquer ação que vão encontrar. É um troço de alto nível. sem planos sem estratégia de histórias shounes, é algo refinado, com estratégia militar, táticas precisas, detalhes e detalhes levados em consideração. Isso faz com que as batalhas sejam bastante críveis, crueis e imprevisíveis por causa desses detalhes. Durante uma ação de guerrilha por exemplo, você vê que cada soldado está em um ponto diferente do campo de batalha e isso importa muito para o desenvolvimento da mesma. As vezes algum detalhe escapa do planejamento e muda os rumos da ação. E novamente repito, é uma ação realista, muito violenta, as vezes parece cruel. Por mais que seja empolgante tem gente que não vai ter culhões de ver as formas como as pessoas morrem.

    Estou reforçando a recomendação, mas fica o aviso para os fracos.

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