Mangas Undergrounds #2 – Freesia

Criado em 2003 por Jiro Matsumoto e publicado na revista Ikki, “Fressia” conta a historia de um Japão alternativo no qual, devido à superpopulação nas prisões, foi aprovada uma lei que permite os assassinatos por represália, ou seja, caso uma pessoa tenha tirado a vida de alguém muito querido a ti, você terá o direito legal de contratar um assassino para matar esta pessoa, ou até assassiná-la com as próprias mãos, criando assim uma sociedade podre, em constante guerra, corrupta e… parecida com a nossa.


Logo de cara, a premissa do manga já levanta várias questões ético-morais. Você cometeria a tal vingança em alguém que matou a pessoa mais importante pra você neste mundo? E se o assassino tenha acabado de sair da prisão por cumprir a sua pena? E se você nem tenha a certeza absoluta que seja ele o culpado? E se ele tiver família, filhos? Várias questões do tipo são propostas durante a obra, poucas são realmente exploradas como poderiam ser e raramente são o foco do enredo, mas elas estão sempre lá, pairando sobre a cabeça do leitor, como um mosquito irritante que só ganha mais força a cada tapa dado. Irritante, porém muito mais instigante do que decepcionante.

Mais interessante do que os debates propostos pelo manga no entanto, é esse mundo histericamente podre em que doses de ironia vazam de cada beco escuro criado por essa arte suja, algo que só a mente sarcasticamente malévolo de Jiro Matsumoto poderia criar. Acredito que poucos conhecem esse mangaka, mas Matsumoto é um dos grandes nomes quando o assunto é manga obscuro. Ele possui uma capacidade muito interessante de criar situações e personagens que mesmo que pareçam totalmente irreais e sem significado, no fundo são uma retratação fiel de nós e da nossa sociedade. É claro que nunca que uma lei dessas seria aprovada no mundo real, mas se fosse, ela seria exatamente como retratada aqui: falha e corrupta.

Por exemplo, tudo no manga a primeira vista parece que é feito para defender a pessoa que poderá sofrer a morte por represália. Assim que alguém levanta a morte por vingança ao governo, o suposto assassino é previamente avisado e tem o direito legal de contratar um guarda-costas, caso ele não possua as condições financeiras de contratar, o governo fornecerá um gratuitamente. Todo esse cenário lembra alguma situação vivenciada por nós?

E assim como uma pessoa pobre, que não pode contratar um advogado decente raramente tem seus direitos totalmente defendidos contra alguém rico com um ótimo advogado, no universo de Freesia acontece a mesma coisa. Nunca que uma pessoa com um guarda-costas do governo, ganhará de um assassino altamente treinado e caro. Uma metáfora inteligente, só que construída de uma forma que nunca fica muito forçada no contexto. O autor não sai gritando isso na sua cara, é tudo muito sutil, inserido de forma lógica na historia e que deve ser percebido pelo próprio leitor. O universo criado por Jiro é muito interessante, mas todo esse cenário na verdade é só o braço que suporta o soco na barriga que é Freesia. O punho que te acerta no estômago, na verdade, são os personagens e seus conflitos internos totalmente bizarros.

O foco é dividido mais ou menos entre três personagens, todos assassinos contratados para cometer os atos de vingança de uma mesma agência. Pra começo de conversa temos o protagonista Kano, um homem sem emoções, que conversa com uma mulher que somente ele pode ver e escuta o tocar de um telefone que só ele pode escutar, algo que está deixando-o muito louco, isso se ele já não é completamente maluco. Totalmente frio e apático, Kano tenta, morte após morte, fazer algo que nós tentamos todos os dias, encontrar algum motivo para sua vida e existência. E cada vitima executada por ele lhe ensinará lições valiosas de como fazer isso (ou se pelo menos isso é possível) das formas mais surpreendentes, mas sem moralismos exagerados é claro.

Depois somos apresentados ao colega de equipe e veterano em assassinatos Mizoguchi. Um homem completamente maníaco que agride sua esposa todo dia e que se considera um caçador nato. O “leão” nunca teve problema em caçar nenhuma presa, mas a entrada da “zebra” Kano em seu território irá complicar um pouco a situação e quando uma peça começar a funcionar errada, o sistema poderá falhar por completo.

Por fim temos o novato na profissão e ideologicamente ingênuo Yamada. Um homem que possui completa e cega confiança na lei da vingança, mas quando passa a conviver com a realidade podre do sistema percebe que nada era como ele pensava. O policial do bem, no entanto, não irá se entregar por completo e irá arranjar uma forma de fazer sua própria justiça.

A história é separada claramente em pequenos arcos. Em cada um o trio é chamado para realizar um ato de vingança contratado. Mais do que o thriller emocionante que acaba sendo o próprio ato da matança, a historia vale a pena pelas interações entre os personagens, sendo Mizoguchi o mal, Yamada o bem e Kano… bem, o Kano é o Kano, um personagem que por mais irreal que seja no começo, irá sofrer um crescimento junto com o leitor durante a obra.

Enfim, depois de tudo isso acho válido dizer (se é que já não era óbvio) que Freesia não é um manga pra todos, não é nem um manga para queles que acham que não estão no meio desse “todos”. A arte já vai eliminar mais da metade dos leitores: é bem suja e não vai agradar a grande maioria. O enredo tem um ritmo muito fora do padrão e pode chegar a ser cansativo às vezes. As alucinações dos próprios personagens confundem o leitor a ponto dele mesmo não saber o que é real ou não. O personagem principal é muito apático no começo, fica muito difícil de se identificar com ele… Mas se você tiver a coragem de ultrapassar esses pequenos detalhes, tenho certeza que encontrará uma obra bem madura, com uma arte que pode surpreender bastante, cheia de metáforas bem construídas e personagens que só não são mais malucos do que são reais.

E é por tudo isso que… eu recomendo: Freesia.

Criado em 2003 por Jiro Matsumoto e publicado na revista […]

6 thoughts on “Mangas Undergrounds #2 – Freesia”

  1. Pelo que você falou me lembrou muito de um mangá que li há alguns anos atrás. Não pelo enredo, mas sim pelo ‘jogo psicológico’. Mas não consigo lembrar de jeito nenhum o nome -.-
    De qualquer modo, parece o meu tipo de leitura. Vai pra lista :)

    Obrigada pela dica, sempre é bom saber destas obras mais underground.

    PS.: Ótima review do Tsuritama, achei que ninguém ia fazer :P

  2. Como diria o grande Timmy Turner: “Chaaaaaato”.
    E questões ético-morais? Pffff. Autor de mangá não é Aristóteles, não.

  3. Muito bom mesmo! Estou adorando esses post de mangás undergrounds, seria legal se você falasse quantos volumes, ou capítulos são o mangá completo, e se ainda está ou não em andamento… pra já ter uma ideia de quanto tempo levaremos para ler, fica a dica.
    Valeu, foi uma ótima leitura!

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